O escritor e a vertigem

Giovana Dealtry

        No início do século XX, era comum encontrar na imprensa carioca textos e caricaturas que buscavam representar a nova cidade reurbanizada por Pereira Passos pela elaboração de metáforas e imagens ligadas ao corpo. A elite aburguesada, assim como certa facção de jornalistas e escritores, via o antigo Rio dos portugueses como um corpo decadente, do qual era preciso extirpar antigos casarios e tradições.
        A única cura possível para este corpo agonizante seria uma intervenção cirúrgica, promovida pelo estado, na fisionomia da cidade. Para estes homens, é a reforma da capital federal que irá assegurar ao país a entrada na modernidade aos moldes europeus. O governo parece acreditar que a mudança do cenário, ao lado de uma campanha higienista, irá proporcionar uma conseqüente transformação dos hábitos e da cultura popular.
        Pelo menos, essa era a crença defendida por alguns jornalistas. "E, pela Avenida [Central] em fora, acotovelando outros grupos, fui pensando na revolução moral e intelectual que se vai operar na população, em virtude da reforma material da cidade. A melhor educação é a que entra pelos olhos." (Bilac,1905) (grifos meus). Na concepção bilaquiana, o espaço físico é compreendido como fator determinante para a construção de uma nova imagem de nação brasileira. Ao destruir baiúcas e taperas, acredita-se estar também eliminando a memória do Rio Antigo; ao mesmo tempo em que se educa e se molda o populacho segundo os modelos 'civilizados'.
        Assim, o corpo da cidade passa a ter papel determinante na simbolização do nacional, substituindo o corpo do índio romântico, aclamado por suas qualidades heróicas. É sintomático que nesse período a fantasia de índio seja banida do carnaval, por decreto governamental e que o próprio Bilac confira aos indígenas características como "malícia" e "fria dissimulação". (Bilac,1903) Parece ser mais fácil, durante a Belle Époque carioca, criar um modelo em pedra para suprir esta ausência de um corpo exemplar, como havia no Romantismo. Nas crônicas daquele período ocorre um processo quiasmático: a cidade personifica-se; ganha veias, artérias e coração, enquanto os excluídos da Avenida Central animalizam-se. Este processo fica claro no texto de Bilac sobre a Revolta da Vacina.

        

Passando pela Rua Senador Dantas, a alcatéia arrancara, torcera, espezinhara, destruíra todas as pobres árvores pequenas, que, ainda fracas e humildes, dentro de suas frágeis grades de ferro, só pediam para crescer e dar sombra, (...) e um pouco de carinho aos homens... Já com essa brutalidade sem nome, o bando feroz mostrara bem claramente a natureza do seu instinto e das suas intenções....Na Avenida, suas vítimas foram os postes de iluminação elétrica.

(Bilac, 1904)

        O léxico sobre os "criminosos" é extenso: "feras" , "barbárie" , "patas da matuta desenfreada", "rapina" etc. Enquanto a cidade é vista como uma vítima indefesa, impregnada de subjetividade: "amarguradamente" , "tontas e perdidas" , "aflição e horror"....O que depreendemos desta pequena leitura é que nesta troca reafirma-se o local central da cidade moderna como 'sujeito'. Isto é, na ausência de um personagem como o 'índio' que simbolizava os ideais românticos, surge este 'sujeito em pedra', novamente colocando o Brasil em acordo com a Europa. Assim, a expressão individual é assegurada somente à elite e, mais que tudo, à própria urbs. Como afirma Marcos Guedes Vaneu, "o progresso chega ao paradoxo quando priva o indivíduo de sua subjetividade e a transfere para os objetos". (Veneu,1987: 13)
        É neste contexto que se insere este pequeno ensaio, que privilegia na primeira parte as relações entre os cronistas Olavo Bilac e João do Rio e os excluídos da Belle Époque carioca. O que me interessa é investigar as transformações operadas na transposição dos ideais de progresso e modernidade para os trópicos. Em seguida, investigo uma possibilidade de compreender este mesmo período pelo 'outro' lado: o relato silencioso dos excluídos deste processo de modernização. Como veremos, o jogo entre estas partes distintas estabelece-se mediado pelo corpo, que ora ganha conotações de objeto narrado, ora se estabelece como a própria narrativa.
        Interessante é notar como certas convenções realistas-naturalistas são utilizadas pelos escritores do início do século na representação das novas relações cidade-corpo. Podemos observar em Bilac, assim como nos textos naturalistas do século XIX, uma construção do indivíduo a partir da determinação do meio. Em Bilac, qualquer tentativa de individuação dos excluídos, seja a Revolta da Vacina ou a Festa da Penha, é imediatamente repudiada como ato da animália. Qualquer manifestação que não corresponda aos novos padrões da modernidade é interpretada como resquício de um passado vergonhoso ou como uma rebelião localizada de uns poucos desocupados e vadios contra o 'progresso', nunca como um reflexo das diferenças e contradições culturais da sociedade.
        Não devemos nos esquecer que para o mesmo Bilac a melhor educação é a que entra pelos olhos. O cronista acredita que "a reforma material da cidade" é capaz de transformar a barbárie em homens civilizados. O Rio da Belle Époque, símbolo da intervenção do homem sobre a natureza, reconduz a literatura a uma outra vertente naturalista brasileira em que, paulatinamente, abre-se mão do universalismo por um compromisso estético local.
        Substitui-se o caráter cientificista e determinante da 'herança genética' de Zola, por uma positividade em prol da construção de um novo país, de um novo brasileiro, em concordância com os ditames da modernidade. Fadados a viverem e serem representados como 'animais', os ex-habitantes dos cortiços têm agora a possibilidade de se transformarem em 'povo', mediante a reformulação do meio em que vivem. Um naturalismo de positividade, por assim dizer, aparece discretamente ao lado do naturalismo azevediano. Das crônicas bilaquianas, podemos concluir que 'povo' será a massa homogênea que reage sempre pacificamente aos estímulos civilizatórios providos pela cidade. É assim que durante a inauguração da Avenida Central a 'rapina' se transforma no "meu bom povo" e adquire, embasbacada diante dos magníficos prédios, 'uma inteligência nativa, exuberante, pronta' (Bilac, 1905).
        Na construção desSe novo imaginário, o conceito imanente de 'povo', como afirma Homi Bhabha, serve a um ideal pedagógico que anseia vê-lo como representação de uma nação pretensamente homogeneizada, impedindo qualquer expressão do 'sujeito' (Bhabha,1998: 206-207) Os excluídos - sociais e culturais - só são admitidos quando comportam-se como corpos domesticados.
        Vemos que só é possível ao indivíduo destacar-se da entidade povo - e assim ganhar direito a uma certa visibilidade, que nem sempre é sinônimo de tolerância - pelo caráter marginal de seus gestos. Em toda uma linhagem de escritores cariocas, da qual constam João do Rio, Lima Barreto, Marques Rebelo e Antônio Fraga, esse sujeito expurgado retorna às páginas como projeto estético - e muitas vezes ideológico - capaz de denunciar a falácia da nação una.
        Na superfície do corpo/escritura tensiona-se o aspecto pedagógico da narrativização de uma nação autogeradora e essencialista - para utilizar conceitos de Bhabha - através de um sujeito perfomativo, que rompe a imagem idealizada de povo, deixando emergir uma nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eterna autogeração, torna-se o espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural.
        Se o aspecto pedagógico procura criar uma simbiose perfeita entre o significado e o significante, produzindo signos fixos e eternos, o perfomativo estimula justamente o deslocamento contínuo do signo nação, produzindo diálogos pontuais com as diversas camadas que o constitui. Nesse sentido, ao serem transpostos para o Rio de Janeiro os ícones da moderna nação européia têm seus sentidos transformados pelo encontro com uma outra cultura e sociedade.
        A fala oficial de Bilac, no entanto, não evidencia os ruídos provocados por essa aproximação de tempos e espaços dessemelhantes. Para o cronista, o processo é simples: sai de cena o corpo do carioca 'pé-de-boi', 'atarracado e gorducho' e surge o corpo desse novo carioca - metonimicamente, do novo brasileiro - "trêmulo como uma figurinha de cinematógrafo, usando óculos de chauffeur, calção e sapato de jogador de foot-ball, e tendo na mão direita um foguete comemorativo e na mão esquerda um carnet de baile..." (Bilac,1907).
        Aqui, as fronteiras são claras e a concepção temporal linear e evolutiva; o fim do tempo colonial implica o imediato surgimento de um tempo da modernidade. Ou ainda, a ocupação territorial da cidade pelos edifícios, automóveis e novos comportamentos implicaria uma entrada efetiva em uma nova concepção de tempo. O espaço público modifica-se para que o tempo do moderno possa existir.
        No entanto, outros cronistas pensavam de forma diversa. É na escrita de certos intelectuais e artistas cariocas que os múltiplos espaços/tempos da cidade voltam a se encontrar. Nela, as esferas dissonantes da nação são superpostas (re)criando uma cidade construída a partir de um deslocamento de pontos de vista do centro para a margem. Surge daí uma outra cidade, não mais em pedra, mas em carne. Uma outra representação de cidade que tem no corpo dos 'bárbaros' seu principal foco.
        É o corpo desses excluídos que passa a ser o espaço de produção de sentido, diante da impossibilidade de elaborar um discurso em diferença ao registro oficial. Melhor dizendo: o corpo passa a ser, ele próprio, espaço de elaboração discursiva. Para melhor compreender esSe processo, é importante notar as relações entre esSe novo aspecto da sociedade carioca e as influências decadentistas que perpassam de um dos mais profícuos cronistas daquele período: João do Rio.
        Não se trata aqui de estabelecer fronteiras entre o decadentismo à Huysmans e o estetecismo presente na obra de Wilde, nem de identificar influências precisas destes e outros autores sobre a ética e escritura barretiana. Interessante é perceber que, apesar das diferenças entre essas correntes, ambas - assim como o dandismo então em voga - funcionam como um contraponto à exarcebação sentimentalista romântica e ao cientificismo naturalista. Contra os excessos da emoção e da ciência, produz-se uma literatura que à primeira vista parece ao leitor extremamente fútil. Assim é que Alfredo Bosi descreve os livros de Gabrielle D'Annunzio e Oscar Wilde como "cintilantes mas ocos". (Bosi, 1980: 220).
        'Ocos' porque ao invés de uma suposta profundidade romântica ou de uma preocupação social de cunho realista, estes relatos oferecem um mundo mediado pelos sentidos. Hipertesiado, este homem moderno inaugura, no dizer de Veneu, uma sensibilidade nervosa que "termina por subverter as fronteiras entre sujeito e objeto". (Veneu, 1987: 12) O que encontramos em João do Rio, assim como em certos personagens de Wilde, é um olhar vertiginoso, que percorre indiferenciadamente os vícios das elites ou das sarjetas, seja em Londres ou no Rio de Janeiro.
        Estas camadas, no entender desses autores, parecem viver para fora do nascente círculo capitalista, que fomenta na virada do século: o estabelecimento de camadas medianas aburguesadas como forma de sustentação da sociedade. O homem mediano - em vários sentidos - que aqui desponta em nada atrai a atenção de Paulo Barreto, pois, desprovido de glamour ou vício, nevrose ou delírio, este cidadão persegue apenas a própria subsistência. O interesse do jornalista volta-se então para "a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e ausência dos escrúpulos" (Alencar, apud. Gomes,1996: 63)
        E também, poderia acrescentar, porque ambos os grupos relacionam-se com o mundo através da superficialidade de seus sentidos. Superficialidade compreendida aqui, não como oposição ou desvantagem frente a uma suposta profundidade. Mas que vê, à maneira nietzschiana, a aparência - seus trajes, gestos, comportamentos - como um valor de fonte e produção de conhecimento. Como afirma o próprio Nietzsche, "o que sei eu dizer de qualquer essência, a não ser, justamente, apenas os predicados de sua aparência!"(Nietzsche, 1983, p.122)
        Isto posto, encontramos na obra de João do Rio essa permanente dobra em aparência, que ora tem como foco central a gente de cima, ora volta-se para a canalha. Em ambos os casos notamos os constantes atritos produzidos pelo deslocamento das convenções literárias européias para o Rio de Janeiro. Estes 'modelos originais', por assim dizer, terminam por serem corrompidos pelo contato com a cultura local e, fatalmente, recriam nos trópicos significações outras. A 'cópia' não só borra, como acrescenta novos dados à sua origem.
        Em A Alma Encantadora das Ruas notamos que o autor, influenciado pelo modelo wildiano, persegue o fantástico nas manifestações de miséria. Urde, assim, uma dupla trama: cria um narrador intelectualizado que não se exime em criticar as injustiças sociais, ao mesmo tempo que satisfaz o desejo secreto das elites de partilhar a vida dos malandros, prostitutas e pequenos trabalhadores. A crônica "Cordões" não será uma exceção. A princípio, o narrador parece compartir do mesmo horror pelas manifestações populares evidenciado por Bilac.

        

Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. (...) Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d’água cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila dos lanças-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade.

(Rio, 1995: 89)

         Entretanto, essas descrições antes terminam por fascinar o leitor ao invés de afastá-lo, como ocorre na prosa binária e meramente opositiva de Bilac. Os excessos de sentido que compõem o texto, acabam por borrar as fronteiras entre narrador e objeto narrado. Da total incompreensão diante dos cordões formados por populares da zonas excluídas - como Cidade Nova e área portuária -, o repórter começa aos poucos a revelar sua sedução em face daquele "bem da alma encantadora e bárbara do Rio" (Rio, 1995: 91). João do Rio aproveita-se da ficcionalização do companheiro de carnaval para discorrer sobre a importância social e cultural desse evento na formação das camadas populares.
        Opera-se uma troca reveladora. O que antes parecia ser considerado apenas fruto da loucura e da sandice popular, passa a ser visto como peça fundamental para a compreensão de outras faces da nação, que não habitam o discurso oficial. O cordão traduz no postura do corpo dos populares a impossibilidade dessas camadas de organizaram-se nos moldes do discurso promovido pela modernidade. No texto de João do Rio, detona-se a tensão entre o corpo prazeroso, dionisíaco, caótico do povo e o corpo moderno do cidadão exemplar.
        Diante desse impasse, o autor cria um lugar nevrálgico para a compreensão da sua narrativa: a vertigem, símbolo do horror diante deste 'excesso' de vida. Usualmente, a idéia da vertigem, definida pelo próprio João do Rio, traduz a preocupação do repórter em flagrar o momento. Daí, sua angústia e fascínio, à semelhança de Baudelaire, em captar o instante, produto da modernidade.
        Entretanto, a idéia de vertigem é aqui acrescida de outros aspectos que revelam essa transposição do caráter moderno para o Brasil. Em "Cordões", o que presenciamos é a falência do narrador em compreender pela via dos modelo europeu o que se passa. Enquanto se posiciona como mero espectador do carnaval, o narrador não consegue equacionar sua formação européia e moderna ao aparente caos advindo do cotidiano dos populares. O confronto com estas outras cidades - dionisíacas, viciadas, mal cheirosas - causa a vertigem e revela a porosidade dos pilares de uma sociedade sustentada pelos parâmetros de outras culturas estrangeiras.
        As contradições são expostas sem que haja uma possibilidade de resolvê-las, como ensaia Bilac. A vertigem retira, ainda que temporariamente, João do Rio de seu cenário aburguesado e lança-o para o espaço desordenado do outro Rio de Janeiro. Aqui, revela-se as conseqüências da adoção apressada de novos sistemas econômicos e trabalhistas, assim como um dos intuitos da reforma urbana: esconder, para usar expressões de Renato Cordeiro Gomes, a obscena da cena. A obscena, entretanto, insiste em voltar à cena, pelas páginas dos jornais, trazendo inúmeros corpos, em sua maioria imundos e promíscuos.

        

Em cima, então era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões, tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores enchendo paióis de carvão, carregando fardos. (...) Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade. E eu, o adido, o bacharel, o delegado amável estávamos a gozar dessa gente o doloroso espetáculo!

(RIO, 1995: 123)

        Só é possível ao olhar do repórter-flâneur voltar-se sobre si próprio e seus semelhantes diante da miséria dos outros. É observando a enorme distância que separa os trabalhadores das elites, incluindo a si mesmo neste espaço, que João do Rio é capaz de elaborar um olhar crítico sobre a cidade do início do século. Assim, apesar das referências aos excluídos serem semelhantes às utilizadas por Bilac, a animalização na crônica "Sono calmo", produz efeito oposto no leitor. Coloca a canalha e a gente de cima em contato e revela um cotidiano de dependência, opressão e abandono.
        Este é o limite, simbolizado pela vertigem, que João do Rio não ultrapassa. Interessante é perceber a solução que o autor encontra para tal estado vertiginoso. Na maioria de suas crônicas, nota-se um elemento exterior ao cenário em foco - a lua, o amanhecer - que desperta o narrador da vertigem e o traz de volta à 'boa sociedade'. O desenlace de "Cordões" torna-se, por isso mesmo, ainda mais interessante.
        A multidão aproveitou o vazio e precipitou-se. Eu e meu amigo caímos na corrente impetuosa.

Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o Carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do Deboche ritual; o cordão é nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável... (Rio,1995: 97)

        O narrador entrega-se, perde e ganha ao mesmo tempo. Congrega prazer e modernidade em um corpo, que passa a ser o novo lugar de produção da narrativa de uma 'alma brasileira', descrita por uma sucessão de termos que oferecem novas faces superpostas do mesmo país. O encadeamento de "Cordões" revela o aparentemente inesgotável assombro do intelectual brasileiro ao deparar-se com o próprio país. Movimento duplo que será levado ao extremo pelo Modernismo. Por um lado, o intelectual tem sede de retratar, anotar e compreender as diversas feições do país, por outro, ensaia unificar estas várias faces sob um só signo; em João do Rio será a 'alma', e mais tarde no Modernismo, a 'nação'.
        Coloca-se a questão para o intelectual do início do século: como pensar o Brasil tendo recebido uma formação européia? Se, para Bilac, é preciso modificar o entorno e adaptá-lo às exigências francesas, na crônica de João do Rio é o próprio lugar deste intelectual de escritório que vemos ser abalado. A modernidade precisa de um novo autor que, na prosa do cronista, configura-se como o repórter-flâneur, testemunho da vertiginosa transformação da cidade.
        O que nasce daí é uma prosa que, apropriando-me de uma imagem criada por Homi Bhabha (1998:209), lança uma sombra entre o foco de luz autogerador da cultura européia e a alteridade brasileira. Os modelos civilizatórios europeus são 'contaminados' pela vivência das ruas cariocas e registrados pela ótica do flâneur - "foco móvel, que não se fixa em nenhum espaço" (Oliveira & Gens,1995: 21). No entanto, faz parte desse mesmo processo, não se identificar por completo com os tipos que encontra. Daí o caráter extraordinário, em meio à prosa de João do Rio, de "Cordões". Aqui, crônica é justamente a identificação plena entre o 'mesmo e o outro', que termina por borrar as fronteiras e estabelecer um local - físico - para se pensar a cultura local.
        Os 'bárbaros' de João do Rio não serão os mesmos de Bilac. A barbárie não é compreendida como pólo opositivo à civilização, mas como mais um elemento a ser somado na construção da 'nossa alma'. Relendo Stuart Hall, vemos que "o significado é inerentemente instável: procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado pela diferença." (Hall,1999: 40) Assim, para utilizarmos ainda o exemplo da "barbárie", no texto do cronista percebemos como o significado usual de bárbaro é perturbado por esta escrita em diferença, que cria novas significações dentro do contexto das manifestações populares.
        Na visão de João do Rio - e muito particularmente em "Cordões" - os contrastes culturais não aparecem como fatores a serem extirpados, mas como elementos que convivem no mesmo espaço, elaborando um tempo diacrônico. Obviamente, este tipo de texto não acusa um comportamento programático na obra de João do Rio, como acontecerá mais tarde com os modernistas. Pelo contrário, este será um relato atípico do cronista que, como salienta Renato Cordeiro Gomes, ao lado dos demais escritores de sua época, constrói seus textos "por um regime retórico que privilegia a antítese"(Gomes,1996:.32).
        Advém desse ponto o maior interesse de "Cordões". Incapaz de compreender, pela exclusiva via da razão, o que se passa, o escritor quebra com a antítese, no campo lingüístico, as fronteiras, no âmbito cultural, e constrói uma narrativa de choques, em que, de certa forma, o corpo acaba sendo privilegiado como local de produção de saber. É apenas quando o corpo celebra, que é possível ao narrador compreender efetivamente os argumentos do companheiro a favor dos cordões. Nesse ponto, João do Rio ultrapassa a vertigem e ao invés de tecer, como de costume, um movimento para fora do texto, ele entrega-se e cria um espaço onde não é mais possível estabelecer com precisão as fronteiras entre corpo e razão.

CORPOS ELOQÜENTES

        No ensaio "O duplo e a falta - construção do Outro e identidade nacional na Literatura Brasileira", Ettore Finazzi-Agrò assinala como a cultura européia incorporou os elementos ligados ao "instinto e às leis misteriosas do corpo" - aí incluindo o louco, a mulher, o negro etc - ao "imenso domínio da Alteridade que acabou, assim, por se transformar numa grande feira da Diversidade." Nesse contexto, o Brasil torna-se, ao mesmo tempo, paraíso e inferno; local de maravilhas e horrores.
        NesSa dimensão que não é 'uma' dimensão - mas sim uma proliferação incontrolável de espaços e tempos diferentes impera, desde sempre (...) o Dia-bo, em suma: aquele que 'separa' (do grego dia-bàllein) e que aparece, ele mesmo, como dividido, múltiplo, contra a sacralidade do Não-divisível, do Sim-bólico, do que se apresenta, com efeito, In-dividuus (Finazzi-Agrò, 1991: 53).
        A afirmação de Finazzi-Agrò refere-se sobretudo à relação estabelecida entre os escritores brasileiros com o referencial europeu na construção de uma identidade nacional. Entretanto, a relação mesmo/outro é também seguidamente reproduzida no âmbito interno da nação. Contra a imagem do In-dividuus brasileiro civilizado surgem 'corpos em dissonância'. Corpos dia-bólicos que, ao invés de se agregarem ao grande corpo da urbs, criam narrativas próprias, em desajuste com o discurso monofônico oficial.
        Em A Alma Encantadora Das Ruas, tão importante quanto os depoimentos colhidos pelo repórter-flâneur são as descrições desses corpos, em que notamos como os excluídos reconstituem no próprio corpo locais de representatividade e interação social. Como se diante da crescente falta de espaços geográficos e simbólicos reservados a essas camadas, como se diante do silêncio imposto, o corpo se transformasse numa espécie de última fronteira, em que ainda é possível narrar.
        E dentre as várias formas de constituir discursos tendo como veículo, suporte e texto o corpo, destaca-se, em João do Rio, a tatuagem. Pois, nas palavras do próprio cronista, a "tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões" (Rio, 1995: 30). Dessa forma, o cronista reconstitui por meio da 'leitura' destes corpos inviolados o registro de paixões, preferências religiosas e governamentais. João do Rio ensaia, como um etnógrafo amador, reconstituir através desses símbolos marcados na pele, a história pessoal de cada personagem, bem como traduzir para o leitor as leis que regem este universo tão particular.
        Assim, como primeira tarefa, o escritor divide os tatuados em três grupos. No primeiro, estão os negros, tatuados por "fetiche". No segundo, aqueles que se tatuam por questões religiosas, como muçulmanos e judeus. "A tatuagem forra a pele dos homens como amuletos" (Rio, 1995: 30). O terceiro grupo é o mais numeroso.

Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência do meio obriga a incrustar no braço coroas de seu país.

(Rio, 1995: .32 )

        É nesse universo, a princípio só definido pelo escritor em função da classe social e da 'influência do meio', que notamos outras formas de organização. Colocam-se nesse grupo personagens marginais; só assim é possível compreender o círculo que envolve igualmente criminosos, marinheiros e soldados. Apesar de representarem lados opostos da cidade - a ordem e a desordem -, esses tipos irmanam-se por serem marginalizados, postos em isolamento social.
        O marinheiro torna-se figura emblemática: sem mais dispor de laços que o vincule à pátria, fixa na pele o símbolo de uma unidade simbólica de nação. A descrição das tatuagens revelará essa constante. São predominantemente ícones religiosos, monárquicos e nomes de amantes que esses marginais buscam tatuar. Estes signos transformam-se em vínculos entre o homem desterriteriolizado - geográfica e miticamente - e os elementos que representam maior estabilidade no imaginário das classes baixas.
        Nesse universo, em que estes homens e mulheres são constantemente silenciados, discriminados, expulsos de suas moradias, a tatuagem é também uma forma de construção identitária, de marcação de espaços. Uma maneira eloqüente de fazer do próprio corpo espaço de elaboração textual, unindo o aspecto estético à transmissão de informações sobre o tatuado ou o grupo ao qual pertence. Metaforizam-se, assim, os sentidos perdidos pelo desenraizamento, pela perda progressiva de um lugar de pertença.
        As tatuagens, nesse cenário, deixam de ser meros adornos para adquirirem o status de linguagem, em que progressivamente troca-se o sinal de esvaziamento pelo de preenchimento e pertencimento. Não admira, portanto, que um negro feiticeiro, ao ser questionado por João do Rio sobre a razão de trazer na pele a coroa imperial, responda "num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente: - Eh! Eh! Pedro II não era dono?" (Rio, 1995: 30).
        Se o ato é servil - como João do Rio afirma - ele é igualmente metafórico de um desejo de tomar posse, e de ser posse, do outro. Assim, a margem invade o centro. Cria uma escrita em que a pele serve não apenas como suporte para a narrativa, mas como elemento fundador desse narrar. Este texto marginal, durante o ato de 'leitura', não pode ser desvinculado do corpo ao qual pertence. Melhor dizendo, o texto só existe quando o lemos em conjunto com o corpo em que está incrustado; corpo que traz em si uma história particular e social, uma subjetividade aliada ao coletivo.
        Talvez essa relação entre corpo e texto seja melhor compreendida quando examinamos as declarações do diretor Peter Greenway (1997) a respeito de seu filme "O livro de cabeceira": "The basic driving force is that every time you see flesh you see text, and every time you see text you see flesh. That's the main theme, the main self-indulgence, the main excitement.1" No filme, como nos tatuados retratados por João do Rio, fica claro que a escrita não é possível sem o corpo. A linguagem só acontece quando corpo e tatuagem/caligrafia se encontram.
        Prova disso é a relação que tanto a escritora/caligrafista como os tatuados estabelecem entre os ideogramas/desenhos e as partes do corpo humano. A metáfora do livro do silêncio, por exemplo, só se completa quando o espectador descobre que o 'papel' escolhido para a redação é a língua de um homem nu. Da mesma forma, revela-se ao leitor de João do Rio, a relação intrínseca entre corpo e narrar.
        As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga2 , e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

- Olha, não me venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher....

(Rio, 1995: 33)

        Na impossibilidade de verem assegurados seus direitos de cidadão e indivíduo, esses marginais inserem-se socialmente pela diferença. O corpo, transformado em narração, assegura-lhes uma construção subjetiva; meio pelo qual expõem suas paixões, crenças e padrões culturais e sociais. Indo um pouco além podemos nos perguntar: será possível pensar esses corpos tatuados como narrativas que respondem ao desejo totalizador de silenciar a fala do sujeito marginal? Obviamente, não se trata aqui de querer transformar essa prática isolada em um gesto programático das classes baixas. Entretanto, podemos observar, na crônica "Os tatuadores", de maneira similar ao que acontece em "Cordões", o encontro entre um discurso fundado nas convenções da modernidade européia e uma contra-narrativa que se apresenta tendo como eixo não a palavra escrita, mas o corpo.
        É na tentativa que o cronista faz de ordenar, delimitar, explicar os diversos procedimentos ligados a práticas e manifestações exclusivas das camadas marginalizadas, que termina por surgir um corpo que escapa às regras das convenções naturalistas. Ao se inserir como um personagem em constante espanto diante do 'outro', João do Rio deixa que os diversos discursos - o narrar e o contra-narrar, as convenções européias e o cotidiano carioca - instaurem um terceiro espaço, em que o corpo partido, diabolizado, possui tanta força enunciatória quanto os modelos advindos do naturalismo cientificista e do realismo.

SOBRE O FIO DA NAVALHA

        Claudia Matos aponta que, para os sambistas dos anos 20 e 30, o samba surge não apenas como fonte de renda, mas, principalmente, como forma de assegurar a identidade cultural dos negros e marginalizados. O samba, portanto, seria um dos primeiros meios pelo qual as camadas populares formariam um discurso próprio sobre sua condição social e cultural. Entretanto, é preciso não esquecer que outras formas de produção discursiva, com menor visibilidade talvez, vindas dessas mesmas camadas já se faziam presente na literatura e na crônica diária.
        Se a transformação urbanística da cidade será o foco principal dos cronistas, as narrativas sobre e a partir do corpo, em especial do corpo do excluído, surgem como um caminho de leitura da modernidade carioca e seus paradoxos. Se a 'alma das ruas' encontra-se em primeiro plano, o corpo esquecido de seus habitantes são relatos que ascendem pelas frestas e revelam, nas relações com a cidade de pedra, um Rio que ao mesmo tempo repugna e fascina as elites.
        Assim, por um lado temos o corpo relatado por estes escritores e repórteres; corpo domesticado, influenciado pelo meio e respondendo passivamente às leis da ciência. Por outro, deparamos-nos com os relatos de João do Rio, que inserem outros elementos, como cultura popular, religiosidade, heranças históricas, na leitura desses personagens marginais. Com isso, ao invés de um narrador pedagógico, centralizado, como encontramos em Bilac, deparamos-nos com um narrador oscilante, que, ao tentar compreender estes tipos da rua, volta e meia percebe que sua formação européia não lhe é suficiente para tal tarefa.
        Esta relação construída no choque entre uma apropriação de valores outros e o encontro com a nossa realidade, em especial com a cultura popular, parece ser uma tônica dos relatos dos intelectuais brasileiros. É impossível, neste ponto, não nos recordarmos de outro escritor brasileiro.
        "Sabes: fiquei enojado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não suportar um dia a fumçanata chula, bunda e tupinambá." (Andrade, s.d.: 47) - afirma Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira, datada de 1923. Como João do Rio, Mário termina por ultrapassar o ponto da vertigem e encontrar-se, por meio da experiência física, com o carnaval e, perigosamente, com certo sentido de pureza brasileira.
        Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel é um puro.

Manuel: sem comprar lança-perfume, uma rodela de confeti, um rolo de serpentina, diverti-me quatro noites inteiras e o que dos dias me sobreou do sono merecido.

(Andrade, s.d.:47)

        Nem é preciso chamar a atenção para a proximidade descritiva entre o relato de Mário e "Cordões" , esse escrito em 1905. O movimento se repete; do estranhamento e repúdio para a identificação e entendimento do carnaval como um símbolo revelador da nação. A pergunta também parece se repetir: como compreender as manifestações populares brasileiras, este corpo carnavalizado dos excluídos, sem abraçarmos sem restrições o clichê redentor, aquele que transforma o carnavelesco num puro ou descobre, em meio a explosão de serpentinas, a 'alma bárbara brasileira'?
        Este me parece ser o fio de navalha sobre qual o pesquisador brasileiro caminha. Pois, por um lado, acostumamo-nos ao longo de séculos a considerar os sentidos menores e falhos diante da luz da razão. Entretanto, inevitavelmente, somos obrigados a lidar com os clichês que nos ligam ao ex-ótico, ao dia-bólico; rótulos que nos diferem ao mesmo tempo que nos colocam em posição de inferioridade em relação à razão européia.
        Essa dualidade resultou em inúmeros mitos, como o da mistura racial sem violência, que ainda hoje constituem a base imaginária da construção da nação. No entanto, é igualmente tolo querer negar a importância de toda uma cultura do corpo que aqui se desenvolveu em diferença à cultura européia. Por certo, a antropofagia oswaldiana será uma das mais produtivas saídas encontradas para equilibrar esses aspectos contraditórios que nos constituem.
        Mas é nos pequenos relatos confessionais de João do Rio e de Mário de Andrade, que nos deparamos com a contradição do intelectual perante a realidade brasileira que lhe escapa ao controle. É nessa fenda irreparável abrindo-se entre estes dois mundos que nasce uma narrativa única. Talvez não 'pura' e reveladora da nossa alma como queriam os cronistas do carnaval. Mas, ao contrário, 'suja', borrado, porque composta da superposição de culturas e tempos, não lineares, não agregadores.



NOTAS:

1"A força básica condutora é que toda vez que você vê carne você vê texto, e toda vez que você vê texto você vê carne. Este é o tema principal, a principal auto-indulgência, o principal excitamento." (tradução livre) http://www.salon.com/june97/greenaway970606.html

2O método do Madrugada, um dos chefes dos marcadores, consistia em arrancar a tatuagem da pele pelo uso de "leite de mulher e sal de azedas", num processo doloroso.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, M. Cartas a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

BHABHA, H. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998

BILAC, O. Crônicas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, (Mimeo).

BOSI, A. História Concisa Da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

FINAZZI-AGRÒ, E. O duplo e a falta - construção do Outro e identidade nacional na Literatura Brasileira. In. Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 1. Niterói: Abralic, 1991.

GOMES, R. C. In: João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

GREENWAY, P. Jun. 97.

Disponível em: http://www.salon.com

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1999.

OLIVEIRA, A. L. & GENS, R. M. C. Flanando pela alma encantadora das Ruas. In. RIO, J. A Alma Encantadora das Ruas. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,1995.

RIO, J. A Alma Encantadora das Ruas Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,1995.